Ponto de ônibus. Dois homens. É madrugada.
Um está de terno e com uma mala de viagem. O outro é mais novo, usa jeans, cabelos longos. Barba por fazer, roupas velhas e um tanto sujas. Fuma cigarro e tem unhas roídas.
O de terno não parece brasileiro. Caucasiano e com uma certa postura inglesa: mal feito de corpo e sisudo.
O mais jovem olha em volta, como a pensar o que aquele homem estaria fazendo alí, àquela hora da madrugada. Como bom carioca puxa assunto, querendo ficar amigo:
_ Esperando ônibus, companheiro?
O homem o olha, sorri sem vontade e nada responde. O cabeludo retoma a tentativa de diálogo:
_ À essa hora fica difícil pegar um ônibus nesse bairro. É gringo é? Falar minha língua? Não? he-he.
O homem de terno empertigado senta-se sobre sua própria mala e acende também um cigarro com um isqueiro de ouro.
O esfarrapado pergunta, desta vez mais irritado:
_ Hei! Não falar minha língua tudo bem, mas esse desprezo me irrita tá sabendo, amigo?
O homem solta tranquilas baforadas e finalmente presta mais atenção ao seu interlocutor. Abre a boca. Vai falar. E fala:
_ Ela se foi…
_ O que?
_ Megalomanias e girassóis desertos. Gripe e fúrias…
_ Não entendi… fala de novo!
_ A chuva não vem, as flores morrerão.
_ Mora no meu país?
_ O planeta vai explodir.
_ É, eu também não aguento mais…
_ Comam gafanhotos!
_… esperar a condução…
_ Ela se foi. Vai ter guerra. Não fiz sexo hoje.
_ Minha bunda tá doendo. Estive sentado todo o dia naquele computador de merda!
_ Deus está morto. As vagabundas me passaram doenças…
_ Meu cachorro mordeu o peito gostoso de minha vizinha. Deu tesão, amigo!…
_ Platão é um merda…
_ Gosto de novela, cinema não. É chato, acaba logo!…
_ Já fui criança… quanto tempo não sou mais…
_ Fuma maconha? É bom… tira esse terno, babaca!
_ Meu inverno tem neve… não acredito em nada…
_ Minha mãe morreu com câncer na cabeça! Tristeza…
_ Minha mulher transou com meu pai…
_ Minha tia tem um isqueiro como esse. Mas é do Paraguai. Latão he-he!
_ À noite me encolho e berro junto com Wagner…
_ Estou sem roupa. Ganho pouco! Sou um merda!
_ Nietzsche tem razão. Jesus Cristo não.
_ Hoje eu peguei a garçonete no corredor da escada. Mó trepada!
_ Armas químicas irreversíveis no ar!…
_ Já roubou, cara? Tu é de onde, parceiro?
_ Sexo não é bom com dor, mas já senti dores terríveis…
_ Porra, que frio! Cadê este puto desse ônibus!
_ Quando traí e fui traido…macacos darwinianos me morderam o cérebro.
_ Eu li Fernão Capelo Gaivota na escola… O livro de minha vida…
_ Estou sufocando…
_ Também foi o único que li he-he…
_ Forças Armadas me entupirão de bombas…
_ Caralho, quero ir pra casa! Cadê este ônibus! Ainda vou comer minha gatinha…
_ Os amores se perderam em Hong Kong…
_ Fui campeão de natação um dia…
_ Fogos no céu azul…
_ Mas desisti de esportes. Sou burro!
_ Trazendo a paz…
_ Me dá um cigarro, estranho!
Toma o cigarro das mãos do homem. Acende com o isqueiro de ouro, que não devolve. O homem sorri e continua:
_ As bruxas estiveram presas nos subsolos das igrejas…
_ Porra, que frio, meu irmão! Minha mente acelera. Sou puritano puto. Quero voltar pra natureza, entende, bicho?
_ E padres comeram crianças por toda vida…
_ Que artista você acha mais gostosa? Eu sou louco pela Catherine Zeta-Jones! Que gostosa!!!
_ E as crianças cresceram e viraram padres.
_ Aí, meu camarada, eu vou nessa, vou andando mesmo! Minha gata tá me esperando. Tenho que dar uma foda senão eu apanho he-he.
_ Cuidado, veja onde se esconderam os urubus!
_ Ela gosta de sexo oral o tempo todo. Minha boca fica dormente, cara!
_ A inveja corrói as almas penadas do planeta!
_ Mas fazer o quê? Se eu não faço, vem outro e créu!
O cabeludo se levanta do chão. Aperta a mão do homem de terno:
_ Foi bom trocar uma idéia contigo, mané!
_ As curvas são infinitas. Minha mulher me largou.
_ Tchau, cumpadre. Aproveita e vá à merda… he-he.
_ Homens não se entendem.
_ Mas minha mulher é gostosinha demais. Que peitinhos! Fui!
_ Alucinações de déspotas dos poderes capitalistas.
_ Posso levar o isqueiro?
_ Joana D’Arc era um tesão.
_ Vou lá! Vou foder!
_ Espere os aviões. Casamatas e ferrões de abelhas nucleares!
_ Quer dormir lá em casa, parceiro? Tu é gay não, né? he-he.
_ A morte é iminente. Os polos derretidos. Continentes desaparecidos. Minha mulher me deixou.
_ Hei! Lá vem o ônibus, maluco! Pega ele!
Mas o ônibus não parou. O cabeludo voltou e amanheceram ‘conversando’.
7 comentários:
que tal "dialogo impertinente"...
Olha não é pq sou sua fã, mas este texto é uma das melhores coisas que já li, com todo respeito, mas "puta que Pariu" mto bom!!!!!!!!!!!
Bjus
Obrigada. Já que foi a primeira a comentar e pelo carinho que tens por mim...
Estudo psicanalítico do olhar por Enrique Vila-Matas. Independentemente do título, é um belo texto, reflexo do nosso tempo. Bjs.
Se você diz...
Beijos.
Diálogo desencontrado... Muitos conversam desse jeito, e parece que se entendem... Será essa a causa de tanta 'solidão' no mundo? Boa jornada nesse novo espaço, Dai. Beijão
valeu pelo comentário!
beijo,
Mário
Seus contos são excelentes. Contemporâneos e belos. Eróticos e transcendentais. Parabéns, Mauro :)
Postar um comentário