sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Diálogo Impertinente

Ponto de ônibus. Dois homens. É madrugada.

Um está de terno e com uma mala de viagem. O outro é mais novo, usa jeans, cabelos longos. Barba por fazer, roupas velhas e um tanto sujas. Fuma cigarro e tem unhas roídas.

O de terno não parece brasileiro. Caucasiano e com uma certa postura inglesa: mal feito de corpo e sisudo.

O mais jovem olha em volta, como a pensar o que aquele homem estaria fazendo alí, àquela hora da madrugada. Como bom carioca puxa assunto, querendo ficar amigo:

_ Esperando ônibus, companheiro?

O homem o olha, sorri sem vontade e nada responde. O cabeludo retoma a tentativa de diálogo:

_ À essa hora fica difícil pegar um ônibus nesse bairro. É gringo é? Falar minha língua? Não? he-he.

O homem de terno empertigado senta-se sobre sua própria mala e acende também um cigarro com um isqueiro de ouro.

O esfarrapado pergunta, desta vez mais irritado:

_ Hei! Não falar minha língua tudo bem, mas esse desprezo me irrita tá sabendo, amigo?

O homem solta tranquilas baforadas e finalmente presta mais atenção ao seu interlocutor. Abre a boca. Vai falar. E fala:

_ Ela se foi…

_ O que?

_ Megalomanias e girassóis desertos. Gripe e fúrias…

_ Não entendi… fala de novo!

_ A chuva não vem, as flores morrerão.

_ Mora no meu país?

_ O planeta vai explodir.

_ É, eu também não aguento mais…

_ Comam gafanhotos!

_… esperar a condução…

_ Ela se foi. Vai ter guerra. Não fiz sexo hoje.

_ Minha bunda tá doendo. Estive sentado todo o dia naquele computador de merda!

_ Deus está morto. As vagabundas me passaram doenças…

_ Meu cachorro mordeu o peito gostoso de minha vizinha. Deu tesão, amigo!…

_ Platão é um merda…

_ Gosto de novela, cinema não. É chato, acaba logo!…

_ Já fui criança… quanto tempo não sou mais…

_ Fuma maconha? É bom… tira esse terno, babaca!

_ Meu inverno tem neve… não acredito em nada…

_ Minha mãe morreu com câncer na cabeça! Tristeza…

_ Minha mulher transou com meu pai…

_ Minha tia tem um isqueiro como esse. Mas é do Paraguai. Latão he-he!

_ À noite me encolho e berro junto com Wagner…

_ Estou sem roupa. Ganho pouco! Sou um merda!

_ Nietzsche tem razão. Jesus Cristo não.

_ Hoje eu peguei a garçonete no corredor da escada. Mó trepada!

_ Armas químicas irreversíveis no ar!…

_ Já roubou, cara? Tu é de onde, parceiro?

_ Sexo não é bom com dor, mas já senti dores terríveis…

_ Porra, que frio! Cadê este puto desse ônibus!

_ Quando traí e fui traido…macacos darwinianos me morderam o cérebro.

_ Eu li Fernão Capelo Gaivota na escola… O livro de minha vida…

_ Estou sufocando…

_ Também foi o único que li he-he…

_ Forças Armadas me entupirão de bombas…

_ Caralho, quero ir pra casa! Cadê este ônibus! Ainda vou comer minha gatinha…

_ Os amores se perderam em Hong Kong…

_ Fui campeão de natação um dia…

_ Fogos no céu azul…

_ Mas desisti de esportes. Sou burro!

_ Trazendo a paz…

_ Me dá um cigarro, estranho!

Toma o cigarro das mãos do homem. Acende com o isqueiro de ouro, que não devolve. O homem sorri e continua:

_ As bruxas estiveram presas nos subsolos das igrejas…

_ Porra, que frio, meu irmão! Minha mente acelera. Sou puritano puto. Quero voltar pra natureza, entende, bicho?

_ E padres comeram crianças por toda vida…

_ Que artista você acha mais gostosa? Eu sou louco pela Catherine Zeta-Jones! Que gostosa!!!

_ E as crianças cresceram e viraram padres.

_ Aí, meu camarada, eu vou nessa, vou andando mesmo! Minha gata tá me esperando. Tenho que dar uma foda senão eu apanho he-he.

_ Cuidado, veja onde se esconderam os urubus!

_ Ela gosta de sexo oral o tempo todo. Minha boca fica dormente, cara!

_ A inveja corrói as almas penadas do planeta!

_ Mas fazer o quê? Se eu não faço, vem outro e créu!

O cabeludo se levanta do chão. Aperta a mão do homem de terno:

_ Foi bom trocar uma idéia contigo, mané!

_ As curvas são infinitas. Minha mulher me largou.

_ Tchau, cumpadre. Aproveita e vá à merda… he-he.

_ Homens não se entendem.

_ Mas minha mulher é gostosinha demais. Que peitinhos! Fui!

_ Alucinações de déspotas dos poderes capitalistas.

_ Posso levar o isqueiro?

_ Joana D’Arc era um tesão.

_ Vou lá! Vou foder!

_ Espere os aviões. Casamatas e ferrões de abelhas nucleares!

_ Quer dormir lá em casa, parceiro? Tu é gay não, né? he-he.

_ A morte é iminente. Os polos derretidos. Continentes desaparecidos. Minha mulher me deixou.

_ Hei! Lá vem o ônibus, maluco! Pega ele!

Mas o ônibus não parou. O cabeludo voltou e amanheceram ‘conversando’.

7 comentários:

Anônimo disse...

que tal "dialogo impertinente"...

Olha não é pq sou sua fã, mas este texto é uma das melhores coisas que já li, com todo respeito, mas "puta que Pariu" mto bom!!!!!!!!!!!

Bjus

Daisy Carvalho disse...

Obrigada. Já que foi a primeira a comentar e pelo carinho que tens por mim...

Unknown disse...

Estudo psicanalítico do olhar por Enrique Vila-Matas. Independentemente do título, é um belo texto, reflexo do nosso tempo. Bjs.

Daisy Carvalho disse...

Se você diz...

Beijos.

Cristina Sampaio disse...

Diálogo desencontrado... Muitos conversam desse jeito, e parece que se entendem... Será essa a causa de tanta 'solidão' no mundo? Boa jornada nesse novo espaço, Dai. Beijão

Mário Mariones disse...

valeu pelo comentário!

beijo,

Mário

Daisy Carvalho disse...

Seus contos são excelentes. Contemporâneos e belos. Eróticos e transcendentais. Parabéns, Mauro :)